segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Contação de Histórias

Uma experiência que eu tive nos meus primeiros anos de faculdade foi a de contar histórias no hospital. Eu lembro que o pessoal brigava pelas vagas para contar histórias para as crianças. Eu não. Escolhi a outra opção disponível: maternidade. Eu gosto de crianças, mas eu sempre tive dificuldades em lidar com crianças doentes. Eu e a torcida do Flamengo, é claro. Um dos meus estágios foi num RH de um hospital. Todo enfermeiro e técnico de enfermagem que eu entrevistava me dizia a mesma coisa: "trabalho com qualquer coisa, menos na maternidade e na UTI neonatal". Eu admiro profundamente os profissionais que conseguem trabalhar com crianças. Eu, no caso, não consigo.

Enfim, por esses motivos e por motivos menos profundos (preferências de horários), acabei escolhendo contar história para as novas mamães. Inicialmente, achei que as pacientes da maternidade talvez fossem ficar constrangidas comigo, mas isso se provou logo uma bobagem, já que muitos enfermeiros e médicos da maternidade também são homens. 

Eu desenvolvi um método para realizar minha sessão de histórias. Eu entrava no quarto, me aproximava do leito, me apresentava e explicava porque estava ali. Alguns pacientes diziam não querer ouvir uma história e eu respeitava. No hospital, existem tantos procedimentos invasivos que o paciente não pode recusar, que eu achava importante eles poderem me dizer "não". Acho que em um ambiente em que a pessoa não tem controle e poder de decisão sobre o próprio corpo (tu querendo ou não vão te dar remédios. Se teimar, vão te amarrar na cama e te sedar. O hospital é um ambiente autoritário e, muitas vezes, precisa ser, para o benefício futuro do paciente) é legal poder ter controle sobre uma coisa. Eu inclusive extrapolei esse pensamento para minha prática como estagiário de Psicologia e como psicólogo residente. A não ser em casos especiais, quando um paciente me diz "não", eu aceito e respeito a negativa, me colocando a disposição para o caso de mudar de idéia e insisto em outros momentos. 

Quando a paciente aceitava, eu conversava um pouco com ela. Há quanto tempo está no hospital? Como tem sido? Recebe visitas? Se sim, de quem? O que acha da comida daqui? Está conseguindo dormir? As perguntas também eram sobre o bebê e como a nova mamãe estava se sentindo. Com as respostas à essa breve anamnese, eu podia escolher a história. Eu sempre tinha dez histórias no meu repertório, quase todas da coleção "Mar de Histórias", volumes 1 e 2 e uma crônica da Martha Medeiros.

Da coleção "Mar de Histórias", eu lembro que usava uma história romana sobre como os filhos eram as jóias mais preciosas de seus pais. Eu usava essa história para mães felizes, geralmente acompanhadas de seus maridos e/ou mães e irmãs, e que geralmente tinham mais de um filho. Quando eram mães adolescentes ou que pareciam não estar muito afim de falar do bebê, eu contava uma história da mesma coleção, dessa vez um conto cômico de origem germânica, em que o casal passava a história tanta decidindo quais desejos queriam que um duende realizasse que os acabavam desperdiçando. Havia também os casos em que eu percebia que a mãe precisava ter sua auto-estima valorizada (afinal, todo mundo ia no hospital saber do bebê e ignoravam aquela que tinha sido o centro das atenções nos últimos 9 meses), então eu lia uma crônica da Martha Medeiros em que ela falava que um "mulherão" de verdade é a mulher que trabalha, que vai no supermercado, que cuida da casa, que cuida dos filhos, etc., ou seja, a mulher "comum". Era fácil das pacientes se identificarem com essa história e eu as via concordando com a cabeça enquanto lia a história. Tinha um bom resultado e, eu sentia, empoderava, ainda que de uma maneira bem simples, essas mulheres. 

Eu percebi que era importante dar atenção às mães e mostrar interesse por elas, ao invés de só falar sobre o bebê. Por isso, eu adicionei mais um recurso à minha sessão de contação de histórias: no final, eu dava para as mães uma flor feita de origami (e devidamente higienizada para poder entrar no hospital, é claro). Eu fazia as flores com a minha irmã, que sempre teve talento pra esse tipo de coisa, nos finais de semana e as pacientes pareciam gostar muito das flores. 

Outro benefício que eu percebi em decorrência das contações de histórias foi o de incentivar a leitura. Houve diversos casos que as pacientes expressaram interesse em comprar o livro que eu usava para contar a história. Houve até o caso de uma paciente que acabou ficando no hospital por várias semanas, em função de complicações, que pediu para sua irmã ir no sebo que tem na frente do hospital e lhe comprar um livro.

Como vocês podem ver, eu sou alguém muito metódico, bastante obsessivo e completamente neurótico. Um dia, eu fui fazer uma contação de histórias em dupla com uma colega de outro curso. Naquele dia deu tudo errado, porque ela, por falta de experiência (ao contrário de mim, que já estava há mais de mês fazendo isso) e por falta de prestar atenção no que alguém mais experiente está falando, acabou fazendo merda.

No primeiro quarto, ela nos apresentou para o casal que estava sozinho naquele quarto grande de seis leitos. Eu bati o olho no marido e percebi que havia algo errado. Ele não estava com uma cara muito boa. Aí a minha colega falou que estávamos ali para contar uma história e perguntou se eles queriam. O marido disse que não. Minha colega insistiu. INSISTIU! Isso não se faz. Aí o casal aceitou ouvir a história e ela contou a história romana sobre como os filhos são jóias preciosas para os pais. Quando ela terminou a história, eles agradeceram e a paciente disse que a história era muito bonita, enquanto sorria. Eu nunca vou esquecer o rosto dela e do marido dela. Nunca. Minha colega, então, perguntou sobre o bebê deles. Eu também nunca vou esquecer da voz dela dizendo isso: "hoje de manhã recebemos a notícia que ele morreu na UTI neonatal". Eu fiquei chocado. Minha colega começou a se desculpar e eu queria me enfiar num buraco. Eles se despediram de nós, e nós ficamos no corredor do hospital tentando entender o que tinha acontecido. Eu fui muito grosseiro com a colega, até porque eu fiquei com raiva por ela não ter obedecido minhas recomendações e por ela ter feito um casal passar por essa experiência terrível de ouvir sobre como filhos são maravilhosos, sendo que eles acabaram de perder um.

No quarto seguinte, tudo ocorreu bem. No seguinte, também. Aí fomos em mais um: ela ofereceu a história e as duas avós que estavam no quarto saíram para o corredor para falar com a gente. Situação similar: o bebê estava na UTI neonatal com um prognóstico não muito favorável. A mãe da criança não estava reagindo muito bem. As avós pediram para que nós rezássemos com elas e eu, mesmo sendo ateu, rezei com elas. Por que que outra coisa se pode fazer num momento desses?

No último quarto, tinha uma mãe sozinha se preparando para ir embora. O marido tinha ido levar as malas no carro e ela e o bebê já estavam de alta. A bebê dela - uma menina linda, gordinha e já vestida com um tiptop cor de rosa - dormia naqueles cestinhos de transportar o bebê. A mãe aceitou ler a história e nós lemos aquela história sobre os filhos serem jóias preciosas. Ela adorou e pediu mais uma história. E a minha colega leu a da Martha Medeiros. Essa mãe também ficou super-feliz com a flor de papel e perguntou se nós queríamos pegar a filha dela no colo. Minha colega prontamente aceitou. Eu relutei um pouco (por medo de deixar a criança cair e vergonha), mas eventualmente aceitei. Eu já devo ter segurado outros bebês na minha vida - tenho primos mais novos que eu, afinal -, mas essa menininha foi a primeira que eu lembro de ter segurado. Ela era tão bonitinha e pequenininha. A sensação de segurá-la foi ótima e melhor ainda foi entregá-la de volta para uma mãe tão feliz e sorridente. Tenho certeza que ela deve ser muito amada hoje e espero que essa mãe continue feliz.

Esse dia foi uma montanha-russa emocional pra mim. Uma sessão de histórias que começou de um jeito tão horrível e triste, terminou de um jeito tão feliz. Até hoje eu sinto um aperto no coração quando lembro desse dia, me sentindo culpado e horrível por ter permitido que um casal num momento tão vulnerável fosse exposto a algo tão horrível. Ao mesmo tempo, lembro de toda alegria dessa última mãe que visitei e da sensação gostosa de segurar aquela bebê tão pequenininha no colo e sinto um calor no meu peito. 

A experiência de contar histórias foi muito rica pra mim. Simultaneamente, eu fazia um estágio observacional em um hospital psiquiátrico e trabalhava em uma pesquisa com mães adolescentes num posto de saúde, mas eu considero que a contação de histórias foi a minha verdadeira experiência de contato com um paciente. É diferente de assistir a um grupo de pacientes sendo conduzido por outra pessoa. É diferente de entregar um questionário para um grupo de adolescentes responder, tirar dúvidas e apenas corrigi-lo depois. Contar histórias foi uma experiência humana, profunda e transformadora. Eu uso as lições que aprendi nesse momento até hoje, rotineiramente na minha prática profissional. Eu super-recomendo para quem tiver a oportunidade de participar de um trabalho voluntário com contação de histórias. E recomendo que experimente visitar outros grupos de pacientes, além das crianças (que são o público-alvo clássico): idosos, transplantados, gestantes, mães... Todos os grupos de pacientes se beneficiam de ouvirem a história, nem que seja pelo caráter puramente recreativo da atividade.

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